Nagrelha (1986-2022)
Gelson Caio Manuel Mendes, ndenge do Sambizanga, nascido a 30 de outubro de 1986. Aquele que sim senhora, chegou na cidade para tirar a vaidade, o Estado-Maior do Kuduro. O pai do Mirelson, Gelson, Naweza, Otchai Nahara, marido da Weza. O mundo conhecia-o por Nagrelha d’Os Lambas, morreu na sexta-feira, 18 e foi enterrado no dia 22 de novembro de 2022, no cemitério de Santa Ana em Luanda.
Filho de pai são-tomense e mãe angolana, antes de se tornar no maior músico angolano, foi adotado pelas ruas, passando mais tempo fora do que dentro do lar materno. Lavou carros no mercado de São Paulo para sobreviver. Mais tarde, como membro de um gangue juvenil, a delinquência tornou-se modo de vida para sobreviver na então cidade mais cara do mundo, Luanda. Conheceu algumas das celas do seu sistema prisional, comeu o pão que o diabo amassou das mãos dos seus agentes da lei. O kuduro foi a sua salvação. Perspicaz, com a resposta sempre na ponta da língua, NaNa, como é carinhosamente chamado pelos seus admiradores, conseguiu escapar à miséria e virar campeão de vendas, colocando o seu Sambila umbilical no mapa e ajudou a fazer do kuduro o maior fenómeno musical que tem Angola como berço.
“Se a minha mãe não me fizesse, Angola podia me inventar”, disse Nagrelha num dos seus concertos. Mas a invenção a que se refere, contudo, deu-se de facto, pelas minhas contas, desde o lançamento de Estado Maior do Ku-duro (LS Produções 2006). O MC do Sambizanga nunca fugiu ao confronto. Tido como o enfant terrible do kuduro, tanto os kuduristas da velha escola como os da sua geração foram alvo de farpas lançadas pelo NaNa, algo que num género que se espelha no rap é encarado como pão nosso de cada dia. O beef e a polémica lhe servem de combustível, galvanizam os fãs. Amém.
Há quem recue até o single “Dança do 4” ainda com o mentor dos Lambas, Puto Amizade (1986-2005) no microfone para assinar o momento em que o legado de Nagrelha começou a ser cimentado. Para mim, antes das multidões, dos recordes de vendas na Portaria e da alcunha de “filho do Zé-Du” pela sua proximidade ao ex-presidente José Eduardo dos Santos e ao MPLA, foi com o single “Comboio II” do álbum de estreia Estado Maior do Ku-duro que os demónios do Sambizanga Nagrelha, Bruno King e Andeloy, mudariam para sempre a história do kuduro, influenciando toda uma geração de músicos tanto em Angola como além-fronteiras (onde incluo, claro, Buraka Som Sistema).
Lembro-me a transformação que foi assistir ao videoclipe de “Comboio II” assinado por Hochi Fu, um dos primeiros realizadores a mostrar o princípio basilar do kuduro: o faça-você-mesmo. Ao invés de colocar os músicos na Baía de Luanda, na praia do Mussulo ou dentro de uma discoteca, como muitos vídeos de kuduro da altura que seguiam a linha da kizomba, com “Comboio II” o senhor PowerHouse (que está para o kuduro como Hype Williams está para o hip hop americano) optou por filmar os bairros da periferia de Luanda como poucos ousaram fazer. Apresentou-os tais como eles são, sem rodeios ou floreados, belos, feios e a fervilhar de criatividade, como o kuduro era e continua a ser.
Para se explicar a dimensão do carisma de Nagrelha, não basta só ouvir o género musical que este abraçou até o terrível cancro o matar. É preciso conhecer as várias periferias que compõem a capital angolana, tanto no plano social como emocional. Luanda não é para principiantes, e o senhor Manuel Mendes sabia disso como poucos. Quando se é íntimo da malária, e da fome se conhece até o sobrenome, existir além da mera sobrevivência é, só por si, revolucionário. Quem o admirava sempre soube separar o homem da obra. Todas as suas contradições, que não eram poucas, noutras figuras públicas seriam um passaporte para o cancelamento, mas com o autor deArquiteto da Paz o efeito parecia ser o oposto: todas as suas imperfeições faziam dele mais humano, mais angolano, capaz de nos causar um nó no estômago e nos comover ao mesmo tempo. “O sono e a morte são filhos do mesmo pai, só que um não sabe brincar”, disse.
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